A mitologia popular sobrevive ao tempo por meio da oralidade, mas também pela capacidade de se reinventar na arte. No Colors Festival, evento dedicado à arte urbana contemporânea, o artista brasileiro representado pela Aborda Deco Treco levou essa tradição a um novo patamar ao criar uma instalação tridimensional inspirada na lenda da Mula Sem Cabeça. Entre formas recortadas, sobreposições de cor e uma atmosfera de assombro e encantamento, Deco criou um espaço imersivo que reinterpreta o imaginário popular brasileiro e o coloca em diálogo com um público global.
Realizado anualmente em Paris, o Colors Festival tem se consolidado como um ponto de convergência da cena urbana internacional, reunindo artistas de múltiplas linguagens para transformar espaços temporários em mostras de arte. Em sua quarta edição, que ocorreu de 20 de setembro de 2024 a 5 de janeiro de 2025, o evento ocupou um edifício de 300 m² em Champigny-sur-Marne, nos arredores da capital francesa. Para Deco, artista com passagens por festivais na América do Sul e Europa, essa foi uma oportunidade de expandir sua pesquisa, explorando novos formatos narrativos e estabelecendo diálogos entre cultura popular e experimentação artística.
Deco Treco constrói universos que transitam entre o pop surrealista e o nonsense, sempre provocando o olhar do público. Com um trabalho que percorre pintura, ilustração e bordado, o artista paulistano desenvolve personagens e cenários que oscilam entre o humor e o insólito, frequentemente criando atmosferas que parecem saídas de um sonho – ou de um delírio coletivo. Suas composições são marcadas pelo uso expressivo da cor, linhas sinuosas e contrastes vibrantes, o que resulta em imagens de forte impacto.
No Colors Festival, Deco transportou sua pesquisa para a tridimensionalidade ao construir uma instalação composta por camadas de madeira recortadas e pintadas, formando uma cena envolvente que convida à interação. Inspirado na Mula Sem Cabeça, uma das figuras mais emblemáticas do folclore brasileiro, o artista transformou o espaço expositivo em uma floresta encantada, onde o público pode caminhar entre recortes de árvores e sombras projetadas, como se adentrasse um território onde a lenda ainda pulsa. O jogo entre luz e cor reforça o caráter místico da obra, evocando a experiência de ouvir histórias à beira da fogueira, no limiar entre o medo e o fascínio.
O folclore brasileiro é um mosaico de influências indígenas, africanas, europeias e orientais, que se consolidou ao longo dos séculos em narrativas transmitidas de geração em geração. Entre seus personagens, a Mula Sem Cabeça aparece como uma figura de contornos múltiplos, presente em diferentes versões pelo Brasil e pela América Latina. Segundo Alves (2017), a lenda tem origem ibérica e assume denominações distintas, como Burrinha de Padre no Nordeste brasileiro, Mulánima na Argentina e Malora no México. Em todas essas variações, a história mantém elementos em comum: uma entidade imponente, com cabeça e cauda em chamas, ferraduras de metal e um galope furioso que ecoa nas madrugadas.
A mitologia popular frequentemente carrega códigos morais e estruturas de poder, e a Mula Sem Cabeça não foge à regra. Historicamente, a lenda foi utilizada para punir simbolicamente mulheres que transgrediam normas religiosas, especialmente aquelas que se envolviam com sacerdotes. Sua imagem, ao mesmo tempo temida e fascinante, reforça como os mitos atravessam o tempo não apenas como histórias fantásticas, mas também como dispositivos sociais que revelam valores, medos e estruturas de poder.
No contexto da arte contemporânea, a apropriação do folclore não se dá apenas como resgate, mas como um campo de experimentação que permite ressignificar essas narrativas. A Unesco reconhece o folclore brasileiro como Patrimônio Cultural Imaterial, enfatizando a importância de sua preservação e adaptação para novas gerações (VIANNA, 2016). Ao deslocar a Mula Sem Cabeça para um evento internacional, Deco Treco não apenas compartilha um fragmento da cultura popular brasileira com o mundo, mas também evidencia como os mitos podem atravessar fronteiras, reinventando-se em novos contextos.
Sua instalação no Colors Festival reafirma o potencial do folclore como território de criação e experimentação, transformando mitos em matéria viva para a arte. Mais do que um retorno ao passado, seu trabalho projeta o imaginário popular no presente e no futuro, criando novas ontologias visuais que se alimentam do inconsciente coletivo.
Sobre a Aborda
A Aborda é uma plataforma inovadora dedicada à arte e cultura contemporâneas na América Latina. Nosso foco principal é a representação de artistas visuais, conectando-os ao mercado por meio de projetos artísticos que englobam fins culturais, educacionais e comerciais. Para falar sobre projetos ou adquirir obras de artistas representados, entre em contato por aqui.
ALVES, Januária Cristina. Abecedário de personagens do folclore brasileiro: e suas histórias maravilhosas. 1. ed. São Paulo: FTD/Edições Sesc, 2017.
VIANNA, Letícia C. R. Patrimônio Imaterial. In: GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2016. (verbete). ISBN 978-85-7334-299-4.
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