Arte têxtil e hierarquia de gênero

A atribuição histórica da prática têxtil às mulheres e sua ressignificação no contexto da arte contemporânea

Tradicionalmente atribuídas às mulheres, práticas como a tecelagem e o bordado foram, por muito tempo, confinadas ao espaço doméstico, reforçando estereótipos que as associavam a uma feminilidade passiva e submissa. Essa conexão não surgiu por acaso, mas como resultado de uma construção social que se valeu da divisão de gênero para desvalorizar essas expressões dentro da história da arte. Contudo, à medida que artistas e historiadoras contemporâneas redescobrem e reinterpretam essas tradições, essas percepções passam a ser desafiadas.

Em 2022, a Aborda abordou essa questão ao colaborar com Isabel Carvalho, historiadora da arte e idealizadora do projeto “Um Teto Seu”. O projeto surgiu do desejo de explorar as diversas possibilidades de ocupação dos espaços na história da arte, especialmente aqueles que foram moldados e ocupados por mulheres. Carvalho busca, através desse projeto, ampliar o entendimento dos espaços artísticos não apenas como locais físicos, mas como dimensões processuais e sociais, onde as mulheres historicamente criaram e interagiram com o mundo artístico, mesmo quando excluídas das narrativas oficiais. Hoje, reavivamos essa discussão com novas colaborações de Aline Moraes, curadora da Aborda, e minha própria, Mariana Barboza, responsável pela comunicação da Aborda.

Como argumenta Rozsika Parker em seu livro “The Subversive Stitch: Embroidery and the Making of the Feminine” (1984), o bordado, apesar de sua complexidade técnica e riqueza cultural, foi durante séculos reduzido a um símbolo de domesticidade. Essa prática foi minimizada, privada de seu reconhecimento artístico e de seu potencial subversivo. Parker aponta que essa marginalização foi reforçada por instituições e movimentos que, mesmo com intenções modernistas, perpetuaram a segregação de gênero nas artes.

Um exemplo emblemático é a Bauhaus, frequentemente aclamada como uma força revolucionária no campo da arte e do design no início do século XX. Contudo, ao examinar mais de perto sua abordagem em relação às mulheres, revela uma realidade mais complexa. Apesar da proposta de integrar arte e artesanato, a escola direcionava as mulheres predominantemente para a oficina de tecelagem, considerada uma prática “decorativa” e, portanto, de menor valor dentro da hierarquia artística. Essa separação não só refletia a visão patriarcal da época, mas também perpetuava uma divisão de gênero que excluía as mulheres de disciplinas consideradas mais “nobres”.

Katy Hessel, em seu livro The Story of Art Without Men (2022), aprofunda a discussão sobre como o cânone da história da arte foi construído de maneira excludente e patriarcal. Hessel, que também é historiadora de arte e curadora, argumenta que a história da arte foi escrita de forma a privilegiar as criações masculinas, relegando as mulheres ao esquecimento ou à marginalização. Seu livro se propõe a recontar essa história a partir de uma perspectiva feminina, destacando a contribuição de mulheres artistas que foram apagadas ou subestimadas ao longo dos séculos.

Nos últimos anos, a arte têxtil contemporânea tem ganhado um novo fôlego. Diferente das abordagens históricas que viam o trabalho com têxteis como uma prática essencialmente decorativa ou artesanal, o movimento contemporâneo desafia essas percepções ao explorar questões sociais, políticas e identitárias através dos tecidos. A arte têxtil hoje é um campo onde artistas experimentam com materiais, técnicas e narrativas, muitas vezes fundindo o passado e o presente para criar obras que questionam e recontextualizam tradições.

Pedro Luis, artista representado pela Aborda, é um dos nomes da arte brasileira a utilizar-se da arte têxtil como suporte para expressão artística, colaborando para novas perspectivas na contemporaneidade. Pedro Luis apropria-se do bordado como técnica principal, para além do tecido, unindo-o com diferentes suportes como papéis e móveis. O artista ainda busca dialogar os processos da técnica e sua estética para a pintura de murais e para a arte digital.

Seus trabalhos evocam aspectos sobre memória, identidade e afeto. Através do bordado, Pedro elabora figuras e textos sobre sentimentos e sensações íntimas. Assim como em seus trabalhos com fotografias de desconhecidos, Pedro Luis transforma os sentidos tradicionais de fotos antigas, coletadas aleatoriamente, para conectá-las a emoções e pensamentos. O bordado desempenha um papel fundamental nessa reorganização de significados, funcionando estética e simbolicamente como um destaque para aspectos que são vagos ou raramente discutidos de maneira clara pelas convenções sociais.

O artista frequentemente utiliza palavras e frases como protagonistas de suas obras, escrevendo-as com as linhas do bordado. Esse efeito linguístico gera um impacto na percepção geral da peça, fazendo com que as palavras ganhem tridimensionalidade. Elas transitam do pensamento para a expressão visual, atuando como elementos gráficos poéticos. Ao extrapolar a visualidade, as palavras evocam referências subjetivas no espectador, ampliando suas interpretações com base em seu repertório pessoal.

A utilização do bordado para as intervenções em suas obras colaboram para um efeito de intimidade dada o histórico de utilização da técnica em ambiente doméstico, locais comumente reconhecidos pela sua privacidade e segurança, não obstante de conflitos, assim recorrendo ao particular que é comum coletivamente.

Pedro Luis, por meio de diferentes provocações, contribui para ressignificar a arte têxtil, deslocando-a de um lugar comumente associado à passividade e considerada estritamente ‘utilitária’ ou ‘ornamental’, para um espaço de livre comunicação e expressão artística. Ele salienta processos e sentimentos individuais que, na verdade, fazem parte de uma realidade humana e social comum. Com esse gesto, Pedro se insere em um movimento maior que vê a arte têxtil não apenas como uma técnica, mas como um campo fértil de reflexão sobre identidade, afeto e memória coletiva.

Parker, Rozsika. The Subversive Stitch: Embroidery and the Making of the Feminine. Londres: I.B. Tauris, 1984.

Hessel, Katy. The Story of Art Without Men. Nova York: W.W. Norton & Company, 2022.

 

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