Cartografias do deslocamento: a memória em trânsito na obra de Eva Uviedo

Marcada por experiências migratórias desde a infância, a artista argentina radicada no Brasil transforma vivências de exílio, identidade e pertencimento em matéria simbólica de seu trabalho artístico.

Por: Mariana Barboza

 

Poucos temas carregam a densidade histórica e a inegável urgência contemporânea como a migração. No campo da arte, essa temática encontra ecos potentes, desde “Retirantes” de Portinari até as investigações geopolíticas de Paulo Nazareth. É nesse território de deslocamentos — físicos, simbólicos e afetivos — que se aprofunda o trabalho mais recente de Eva Uviedo, artista representada pela Aborda.

A história de Eva começa com uma ruptura definidora: a chegada ao Brasil em 1982, aos nove anos, fugindo da ditadura militar na Argentina devido à perseguição sofrida por seu pai, diretor de teatro. Sua lembrança daquele período como “aventura” ilustra a maneira particular como a infância pode processar ou adiar a compreensão de rupturas emocionais, em que a real dimensão só se revela mais tarde.

Ao longo da conversa com a artista, e com as contribuições fundamentais de Aline Moraes, curadora da Aborda, surgiu com nitidez como essa experiência inaugural — marcada pela fuga, pelo recomeço e pela suspensão do pertencimento — reverbera em sua trajetória. Filha de pai argentino e mãe guatemalteca, Eva cresceu entre culturas, geografias e línguas distintas. Define-se, por isso, como latino-americana, numa tentativa de abranger a complexidade de uma identidade sempre em trânsito.

Esse estado contínuo de deslocamento está também na instabilidade das referências, no hábito de adaptação e na busca por novas ancoragens. A arte, nesse contexto, surge como espaço possível de reconstrução, um território onde raízes fragmentadas podem ser ressignificadas. “Minha constante busca por novos suportes talvez venha daí”, observa a artista.

Arte: Eva Uviedo

Nas palavras de Aline Moraes, a obra de Eva configura uma espécie de cartografia emocional: nela, os afetos, as perdas e os deslocamentos se transformam em matéria simbólica, elaborando uma geografia íntima onde pertencimento e memória coexistem em tensão. As figuras femininas que habitam seus trabalhos — muitas vezes portadoras de um deslocamento silencioso — condensam essa dimensão: carregam estranhamentos, mas também sabedoria e reinvenção.

A curadora chama atenção ainda para o modo como Eva lida com o deslocamento como experiência psíquica, cultural e sensorial, uma travessia que articula passado e presente numa teia afetiva que tenta situar a existência no espaço-tempo. Esse gesto se dá tanto no conteúdo quanto na forma: a artista trabalha com aquarela, sumi-e e colagem, materiais que exigem precisão, mas também entrega. Suas cores recorrentes — azul e vermelho — acentuam esse contraste entre profundidade e intensidade.

Entre mudanças geográficas e transformações internas, a artista reconhece que a migração moldou sua relação com os objetos, com a perda e com a memória. Seus trabalhos revelam esse movimento contínuo entre territórios — visíveis ou invisíveis —, em que se reconstroem afetos e se reorganizam experiências, narrativas e imagens ligadas à cultura, à história e à linguagem.

Arte: Eva Uviedo

A seguir, você confere a entrevista na íntegra com Eva Uviedo, realizada em março de 2025.

Eva, você chegou ao Brasil ainda criança, após a ditadura militar na Argentina. Poderia nos contar um pouco sobre esse período e o que significou esse deslocamento forçado para você e sua família?
Cheguei ao Brasil em 1982, com nove anos, fugindo da ditadura na Argentina. Meu pai, diretor de teatro, sofria perseguição política e policial devido ao conteúdo de suas peças, sendo impedido de trabalhar. Já havia uma relação com o Brasil, então viemos para cá. Eu não tinha, e não tive por muito tempo, a dimensão dessa ruptura. Tudo parecia uma aventura, mesmo o exílio, as mudanças constantes, a experiência de abandonar tudo. Hoje vejo que isso moldou minha relação com os objetos, a perda e a memória. Vou falar sobre isso em um livro infantil que deve sair no ano que vem.

Como esse processo de migração influenciou sua percepção de pertencimento e identidade cultural ao longo da vida?
Nunca me senti de um lugar só. Minha mãe trouxe a cultura guatemalteca, meu pai, a argentina — cada um de um lado do continente. Me considero latino-americana. Vivi em áreas extremamente rurais e me encontrei na extremamente urbana São Paulo. No começo, era um incômodo, mas na arte virou possibilidade. Percebi que esse estado flutuante se tornou parte da minha identidade. Ao mesmo tempo, estar entre pessoas que foram silenciadas e obrigadas a sair do seu país trouxe um costume e uma necessidade de tratar de assuntos difíceis de forma sutil.

Como você entende a ideia de estar “em trânsito” não só fisicamente, mas também mental e culturalmente? E como isso influencia sua arte?
Estar em trânsito é mais do que uma questão geográfica. Não é só mudar de lugar, mas também de referências, de costumes; é um estado contínuo de adaptação e de busca por novas ancoragens em diferentes coisas e lugares. Minha constante busca por novos suportes pode vir daí.

Como o seu trabalho artístico dialoga com a ideia de pertencimento e de construção de novas raízes em um espaço estrangeiro? Você acredita que a arte pode ser uma forma de criar uma nova identidade cultural, ou existe sempre uma sensação de “não-lugar” presente nas obras que você desenvolve?
Meu trabalho lida com o pertencimento de forma ambígua: tem algo de resgate das origens, algo de inventar universos próprios, e ainda assim estar sempre um pouco deslocada. Isso se traduz em figuras femininas que, de certa forma, carregam algo de estranho, um sentimento de inadequação. Nos temas, gosto de juntar elementos, histórias, lendas de diversas culturas e encontrar similaridades entre eles. Misturo uma lenda do Japão com uma da Bolívia para falar do desejo dos imigrantes por um lar, por exemplo (Fiesta de los Deseos). Trago uma lenda da Guatemala para falar das mudanças na ocupação urbana do bairro do Ipiranga (Cidades Enterradas)

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